segunda-feira, outubro 2

"Procura da poesia"

De súbito ele teve a idéia de um poema para sua namorada. Achou-o bom, nutriu esperanças, porém repensou antes de ir sentar-se à mesa para ver se outras assomavam ao seu encontro. Poderia ser dessas de se matutar na cabeça mesmo, em pé, cotovelos na janela do apartamento. Uma fina fatia da lua se insinuava para a noite, desabrochava. A coruja da rua, cautelosa, escondia-se por entre a copa da jaqueira. Sabia que os cavalos que comiam grama no terreno baldio intimidavam sua presa. Latidos de cachorro ecoavam, renitente. Ele não via muito sentido naquilo, mas ao menos esse cenário lhe era mais inspirador que o retângulo da mesa gasta: parcos recursos para sua menina. Acendeu um cigarro, esse amigo da poesia, pensava—as baforadas brancas rapidamente diluíram-se na escuridão em ligeiras névoas. Sem pensar, foi à cozinha, abriu a geladeira, meditou um momento, imóvel. Segredou nicotina gasosa para dentro dela sem sequer notar e a fechou em seguida: a imaginação esfriou. “Como que as idéias são feito quiabo, escorre por entre os neurônios”, concluía—já nem lembrando mais de que se tratava. Voltou para a janela do quarto. Teve de se esforçar para ressuscitá-la, para resgatá-la do labirinto lírico em que estava perdida: ela voltou não explicando de onde; e para sua surpresa retornou amigada de outra, um par, um casal, pronto para gerar uma fecunda prole. Ele entusiasmou-se!, seria uma linda poesia para sua namorada! Mas moderou seu contentamento, conservou-se ainda na busca da palavra perfeita, da imagem azul, do perfume almiscarado, ela merecia, as pernas dela lhe eram imperativos poéticos. A vontade era de pegar um ônibus e arremessar-se em seu corpo e queimar-se abraçado em suas coxas abrasadas, perdido no calor da inspiração que chegava...que vinha, que estava perto, bem perto....cheiro bom. Entretanto, sem explicação convincente, novamente abrandou seu entusiasmo. Não queria acordar pela manhã e perceber que a poesia não lhe agradara. Isso lhe dava medo, angústia, diminuía tudo a sua volta. E sua namorada, que pensaria!?Seu pai entrou no quarto, pedira-lhe que trocasse o gás do fogão, queria comer o carneiro de ontem, e que depois fosse pegar o garrafão de água lá embaixo, no carro. Quebra abrupta da realidade: fez tudo que lhe pedira o pai sem pensar em mais nada: metáforas, coxas, corujas, mesas gastas e o resto retomaram seu lugar, mas sem saber o amor lhe corria pelo sangue...

Um comentário:

tgroba disse...

O titulo é um poema de Drummond, que está no livro Rosa do povo.