terça-feira, abril 24

a náusea

"Existo. É suave, tão suave, tão lento! E leve: dir-se-ia que flutua no ar por si só. Mexe-se. São leves toques, por todo lado, toques que se dissolvem e se desvanecem. Suavemente, suavemente. Há uma água espumosa em minha boca. Engulo-a, ela desliza por minha garganta, acaricia-me - e eis que renasce em minha boca, tenho perpetuamente na boca uma pequena poça de água esbranquiçada - discreta - que roça minha língua. E essa poça também sou eu. E a língua também. E a garganta sou eu."


(a náusea, pág 152. jean-paul sartre)

domingo, abril 22

aproveitando o clima pessimista...

"- Ninguém pode julgar senão por si mesmo - pronunciou ele enrusbescendo. - Haverá toda a liberdade quando for indiferente viver ou não viver. Eis o objetivo de tudo.

- Objetivo? Nesse caso é possível que ninguém queira viver?

- Ninguém - pronunciou de modo categórico.

- O homem teme a morte porque ama a vida, eis o meu entendimento - observei -, e assim a natureza ordenou.

- Isso é vil e aí está todo o engano! - Os olhos dele brilharam. - A vida é dor, a vida é medo, e o homem é um infeliz. Hoje tudo é dor e medo. Hoje o homem ama a vida porque ama a dor e o medo. E foi assim que fizeram. Agora a vida se apresenta como dor e medo, e nisso está todo o engano. Hoje o homem ainda não é aquele homem. Haverá um novo homem feliz e altivo. Aquele para quem for indiferente viver ou não viver será o novo homem. Quem vencer a dor e o medo, esse mesmo será Deus. E o outro Deus não existirá.

- Então, a seu ver o outro Deus existe mesmo?

- Não existe, mas ele existe. Na pedra não existe dor, mas no medo da pedra existe dor. Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer o medo e a morte se tornará Deus. Então haverá uma nova vida, então haverá um novo homem, tudo novo... Então a história será dividida em duas partes: do gorila à destruição de Deus e da destruição de Deus...

- Ao gorila?"


F. Dostoiévski, Os Demônios

terça-feira, abril 17

para um blog silencioso...

Ângulo

Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar oco de certezas mortas? —
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construído...

— Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
Que oceano vos dormiram de Segredo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...

Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também, ou porventura,
Fundeaste a Oiro em portos de alquimia?...
............................................................
Chegaram à baia os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...

Detive-me na ponte, debruçado.
Mas a ponte era falsa — e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar à sua beira...

Mario de Sá Carneiro


ainda mario de sá...

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar..
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mario de Sá Carneiro