sábado, março 31

“Por toda a parte, o homem, expelido da Verdade do ser, gira em torno de si mesmo como o animale rationale[1]


“Aqui se tem em mira a possibilidade de a civilização mundial, assim como apenas agora começou, superar algum dia seu caráter técnico-científico-industrial como única medida da habitação do homem no mundo. Esta civilização mundial certamente não o conseguirá a partir dela mesma e através dela, mas, antes, através da disponibilidade do homem para uma determinação que a todo momento, quer ouvida quer não, fala no interior do destino ainda não decidido do homem.
Igualmente incerto permanece se a civilização mundial será em breve subitamente destruída ou se se cristalizará numa longa duração que não resida em algo permanente, mas se instale, muito ao contrário, na mudança contínua em que o novo é substituído pelo mais novo.”[2]


[1] M. Heidegger. Sobre o Humanismo, Pág.67
[2] M. Heidegger. O fim da Filosofia e a tarefa do pensamento, Pág.99

sexta-feira, março 30

Procura-se

Onde está a poesia
Efusivamente
Seu desencontro pôs-se a aparecer
Ante aos homens,
Necrófilos inquestinaveis da esperança

Encimesmadas palávras ainda
Permeiam humana vida,
Que se esvai
A aurora de permanecer, irrevogavelmente,
Hipócrita

Poesia fartou-se humanamente
Da humanidade.

Em vão poetas tentaram apazigua-la,
Mas seus argumentos foram precisos
Seus motivos inquestionaveis
E sua atitude mordaz.
Trancou-se lancinantemente
No reino das palavras, e lá
Fechou-se com alguns
Poetas mortos.

Fechada para o mundo
Poesia pôs-se a vislumbrar
Seu atual espetaculo:
cercada de letreiros torpes
Conversas fulgazes
Contos inoperados.
Poesia dignou-se a sentir pena,
Mas sem revogar seu desmundo impermeavel

Fadigou-se em brochuras
Perante píncaros
De tenaz insensatez,
Permeante o dia-a-dia.
Que prossegue ordinariamente,
Surpreendendo a cada instante
Homens e mulheres desesperançosos
Ante a falta de Poesia.

agda

CAVO. Constância. Fundura de dez braçadas. De quanto? Caracóis. Lodo na cara. Tenho ares de alguém semi-sepulto. Um ouro que não vem. Nem o reflexo. Bom que seria luz amarelada dourando caracóis, as larvas, a minha mão. Bom que seria recompor palavras, cruzá-las, dizer da luz filtro cintilante facetado, dizer do escuro entranha apenas, dizer da busca o que ela é, buscador e buscado, revelar os dois lados, aqui te vês, aqui sou eu te vendo, a órbita gozosa estilhaçando medos, aqui quando eras criança sobre a murada, escondendo a cara, luz te crestando a pupila, pálpebra violeta se encolhendo, braço antebraço vértice do cotovelo apontando aquela que te fotografas.

- hilda hilst

sexta-feira, março 23

rolamento

olhares turvos
ondulações ousadas
sorriso sínico
leveza calada

e foi assim que a noite se seguiu

como que um tempero picante
de sinistra musica interpolada

ela mulher eu homem
ela Homem eu mulher
naquele momento os papéis se invertiam
tamanha loucura do quer e não quer

e assim as coisas prosseguiam
como que uma bossa bem cantada
os sons sequer convergiam,
mas a harmonia sempre vingava

Mas como em um desenlace tudo se acabou
e assim voltamos pra casa
felizes com o que brotou

C A OS;Hakim Bey Capítulo de"Caos, os Panfletos do Anarquismo Ontológico"

O CAOS NUNCA MORREU. Bloco não-lapidado primordial, único monstro venerável, inerte e espontâneo, mais ultra-violeta do que qualquer mitologia (como as sombras frente à Babilônia), a original e indiferenciada unidade-do-ser ainda se irradia serena como as flâmulas negras do Assassinos, aleatória & perpetuamente intoxicada.O Caos surgiu antes de todos os princípios de ordem & entropia, não é nem um deus nem um verme, seus desejos insensatos circundam & definem todas as coreografias possíveis, todos os éteres & flogistons: suas máscaras são cristalizações de seu próprio rosto inexistente, como nuvens.Tudo na natureza é perfeitamente real, incluindo a consciência; não há absolutamente nada com o que se preocupar. Não apenas os grilhões da Lei foram quebrados; eles nunca existiram: demônios nunca vigiaram as estrelas, o Império nunca se iniciou, Eros nunca deixou a barba crescer.Não, ouça, o que aconteceu foi o seguinte: eles mentiram para ti, venderam-te idéias de bem & mal, fizeram-te perder a confiança em teu próprio corpo & sentir vergonha por teus dons de profeta do caos, inventaram palavras de desprezo para teu amor molecular, te hipnotizaram com distrações, te entediaram com a civilização & todas suas emoções usurárias.Não há transformação, nem revolução, nem luta, nem caminho; já és o monarca de tua própria pele — tua liberdade inviolável espera para ser completada apenas pelo amor de outros monarcas: uma política de sonho, urgente como o azul do céu.Para desfazer todos os direitos & hesitações ilusórios da história, é necessária a economia de uma lendária Idade da Pedra: xamãs ao invés de padres, bardos ao invés de senhores, caçadores ao invés de policiais, coletores dotados de preguiça paleolítica, gentis como sangue, saindo nus por aí ou pintados como pássaros, equilibrados na onda da presença explícita, o agora-e-sempre atemporal.Agentes do caos deitam olhares flamejantes sobre qualquer coisa ou pessoa capaz de prestar testemunho à sua condição, à sua febre de lux et voluptas. Estou desperto apenas naquilo que amo & desejo ao ponto do terror: todo o resto é apenas mobília coberta, anestesia cotidiana, merda na cabeça, tédio subreptiliano de regimes totalitários, censura banal & dor inútil.Avatares do caos agem como espiões, sabotadores, criminosos do amour fou, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, educados como bárbaros, esfolados por obsessões, desempregados, sensualmente tresloucados, lobos angelicais, espelhos para contemplação, olhos como flores, piratas de todos os signos & sentidos.Cá estamos nos arrastando pela rachaduras nos muros da igreja estado escola & fábrica, todos os monólitos paranóides. Cortados da tribo por uma nostalgia furiosa, escavamos em busca de palavras perdidas, bombas imaginárias.O último feito possível é aquele que define a percepção em si, um invisível cordão dourado que nos conecta: dança ilegal nos corredores do tribunal. Se eu te beijasse aqui eles chamariam isso de ato de terrorismo: vamos então levar nossas pistolas para a cama & acordar a cidade à meia-noite, como bandidos bêbados celebrando com uma fuzilaria a mensagem do gosto do caos.

sexta-feira, março 16

arcano XVI - a torre

"Sofrer é trabalhar para desembaraçar-se da Matéria, é revestir-se de imortalidade."

(tarô adivinhatório. ed. pensamento)

quarta-feira, março 14

...que belas e doces palavras...
sim, palavras cheias de dor e formosura
quase acreditei que eram minhas - as palavras
vagando entre ego e receio
inconstancia poetica de um ser sem perdão

porque o vazio pesa tanto?
porque me olhas da janela
se essa casa não tem portas?

ah! essa fuga também prisão...

sábado, março 10

vinham por outro lado as idéias,
mansas, que de beber água,
de sentir sono,
de caminhar a esmo,
pegavam carona nas nuvens
compunham-se fôrmas de música:
um estampido alto, debaixo da cama,
debruçada, minha coisa nova,
minha novidade esvoaçante
em pele de laranja-pêra
ah, motivos e idéias e motivos e idéias
para tantos dias quaseamesmacoisa
(não consigo parar, por favor, não respire!)
se houvesse tempo
“valsa vienense”
memória de elefante...
“você veio”?
outro dia, né?
minhas opiniões de bronze
em sua cruelrência devirada
não tem botões, nem alavanca, nem significado...
vamos mentir que foi bonito,
vamos?
zero na cabeça: caixa de ressonância para encher de vinho.
dois no coração: tímpano rubro de escolhas inexplicáveis.
robozinho de feijão-verde
onde caíram minhas íris?
onde, onde espalharam-se minhas palavras?
que, por outro lado, vinham
germinando nas poças d’água suja?
(não respire, por favor, não respire...)

segunda-feira, março 5

não conto mais os dias. vem,
cuidamos um do outro
se o sol nos alegrará e as horas...
as horas não me importam.
desculpa se eu não deixo. olha,
que até gosto quando me tomas sem pedir
os sonhos em outra praia
muito longe...
esquece os outros, me ajuda
eu deixo você pegar.
toma-me de novo. esquece!
esquece...
esquece...
aumenta o volume dessa música?
se o sol nos alegrará e as horas...
preciso ir
não me devolveram ainda.



{se desisto, sonho. se esqueço, ouço.
quem me dera às vezes ser cega e ser surda
ao invés de muda aos teus orgãos.}
CAMINHADA


Eu vinha aquela tarde pela terra
Fria de sapos...
O azul das pedras tinha cauda e canto.

De um sarã espreitava meu rosto um passarinho.
Caracóis passeavam com róseos casacos aos sol.
As mãos cresciam crespas para a água da ilha.

Começaram de mim a abrir roseiras bravas.
Com as crinas a fugir rodavam cavalos
investindo os orvalhos ainda em carne.

De meu rosto viam ribeiros...

Limpando da casa-do-vento os limos
no ar minha voz pisava...


Manoel de Barros, Cômpendio para uso de Pássaros
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregorio de Matos

sábado, março 3

Sem coordenada "M"

não, meu deus!
não pode ser verdade...
o homem senhor do espaço,
morreu por sua vaidade

em cindir o nivelar dos astros
esqueceu sua respiração
e assim sem mais florestas
vive a espreita de uma nave mãe

vivendo a custa dos outros
ladrão interplanar
outrora senhor do espaço
agora no seu limiar